Preâmbulo
* A princípio, pensei em enviar o texto abaixo na íntegra apenas para os apoiadores de A Fantasia Exata, que, como devem saber, está com um novo programa de publicação. A importância do assunto (parte “a” das Notas de andar e ler) me fez decidir por deixar o texto inteiro acessível a todos.
* Na próxima semana, tratarei de um aspecto da poesia de João Cabral de Melo Neto. E darei continuidade às videoaulas sobre a relação entre história e mito segundo Vicente Ferreira da Silva (esclarecendo, desta vez, por que isso deveria importar especialmente a nós brasileiros). Assista, enquanto isso, aos dois vídeos anteriores (aqui e aqui).
* Lembro que hoje, sexta-feira (10), é o último dia para adquirir pela Hotmart três cursos meus pagando um único valor e garantindo acesso por tempo indeterminado (em meu site o acesso está limitado a um ano). Informe-se e aproveite.
* Algumas pessoas me pediram que desse aulas de filosofia mais introdutórias, já que se sentiam pouco aptas a acompanhar as discussões de Convivium (o que, em 100% dos casos, não era verdade). Tenho elaborado um programa de leitura de Lógica da filosofia, de Éric Weil, com o propósito de abordar alguns temas filosóficos de meu interesse com o auxílio de uma obra ao mesmo tempo ampla em seus objetos, acessível em sua linguagem e audaz no emprego da técnica filosófica. É uma obra-prima, enfim. Caso você tenha interesse em mais informações, por favor informe seu contato neste formulário. No dia 20 de outubro enviarei aos interessados um programa mais detalhado. As inscrições se abrirão no dia 27 de outubro e se encerrarão no dia 13 de novembro, data da primeira aula.
* Já conhece FLUSSER_project? Aguarde. Em agosto de 2026.
Notas de andar e ler (#001)
a. Saudades do ateísmo
Ao longo deste ano ouvi algumas dezenas de episódios de SHWEP, The Secret History of Western Esotericism Podcast, comandado por Earl Fontainelle, pesquisador interessado em filosofia e “conhecimento rejeitado” na Antiguidade tardia. Pelo menos no que diz respeito ao universo europeu e norte-americano, não há nome importante na academia hoje que lide com aquele período e aquele tipo de conhecimento que não tenha participado de algum episódio e discutido temas como a imaginação apocalíptica no judaísmo antigo e medieval, a difícil vida dos últimos filósofos da Academia platônica num Império de cristãos pouco tolerantes, a arquitetura esotérica de igrejas no mundo oriental dos primeiros séculos, ou o surgimento de um culto astral no helenismo persa. Aprendi muito; e verifiquei, indiretamente, algumas impressões que de longa data nutria sobre essa renovada atenção à religião e às suas formas mais heterodoxas nas universidades.
O termo “conhecimento rejeitado” não foi cunhado por Wouter Hanegraaff (James Webb foi provavelmente o primeiro a empregá-lo), mas foi o professor e historiador holandês quem o difundiu na academia durante os últimos 20 anos. Dificilmente você estudará o desenvolvimento histórico do gnosticismo, ou quem sabe da cabala como matriz medieval e hispânica de grande parte do que se veio a compreender como esoterismo, sem passar pelas obras de Hanegraaff e de outros autores sob intensa influência sua. Seu livro Esotericism and the Academy: Rejected Knowledge in Western Culture (2012) tornou-se um manual inescapável. Oferece um panorama completo, porém sucinto, da história do esoterismo no Ocidente desde suas raízes no “platonismo oriental”, a passar pelos leitores do Corpus Hermeticum, pela “cabala cristã” de Pico della Mirandola e pela idealização de uma “filosofia perene” por Agostino Steuco, para então chegar às polêmicas protestantes contra o ”platonismo pagão” dos Padres da Igreja, que se defenderia, de modo que no fogo cruzado das guerras de religião as formas menos ortodoxas de fé se refugiariam em sociedades secretas, não poucas delas inteiramente fictícias, como a dos rosacruzes, cujos manifestos fraudulentos foram lançados antes que existisse um rosacruz sequer.
Os capítulos finais do livro se ocupam da reabilitação, pelo menos como objeto de estudo de prestígio, do “conhecimento rejeitado” na academia. Especial importância tiveram nesse processo os autores ligados ao círculo de Eranos, à frente deles Carl Jung, logo seguido por Henry Corbin, Ernst Jünger, Gershom Scholem e tantos outros, que por décadas se reuniram anualmente em Ascona (Suíça) para um congresso fechado sem pauta nem programa, a menos que se tome por programa a obsessão que compartilhavam por formas pouco usuais de pensamento e por espiritualidades dos quatro quadrantes do globo.
Entre outros feitos notáveis, Hanegraaff, que ocupa a cadeira de história da filosofia hermética na Universidade de Amsterdã (a única do mundo a oferecer programa de doutorado nessa área de estudo), foi responsável pelo resgate do pensamento de Ludovico Lazzarelli e por uma revisão completa de seu papel — e de outros autores similares — na chamada tradição hermética, que não passaria por autores como Marsilio Ficino, como se pensa ou se pensava de maneira quase unânime.
O pesquisador holandês descreve à p. 151 de Esotericism and the Academy o que considera o programa de estudo acadêmico necessário a uma correta apreciação da história do esoterismo:
o estudo do esoterismo que se defenderá aqui pode ser caracterizado como historiografia antieclética. Esta questiona os procedimentos seletivos pelos quais os historiadores desde a época do Iluminismo limitaram o estudo da filosofia ao que consideram a “verdadeira” filosofia, o estudo do cristianismo ao que consideram o ”verdadeiro” cristianismo, o estudo da ciência ao que consideram a “verdadeira” ciência, e até o estudo da religião ao que consideram a “verdadeira” religião ou o estudo da arte ao da “verdadeira” arte. A historiografia antieclética busca corrigir as descrições amaneiradas e ideológicas da história ocidental que resultam dessas formas de ecletismo, e para isso chama atenção para o papel e o significado das várias correntes e ideias que acabaram indo parar no depósito do “conhecimento rejeitado” desde a época do Iluminismo. Em suma, ela questiona o cânon da cultura acadêmica e não acadêmica moderna e enfatiza que nossa herança comum é de uma complexidade bem maior que aquela que se pode inferir dos manuais acadêmicos usuais. É óbvio que esse programa não reflete uma agenda apologética a favor do “paganismo” ou do “esoterismo ocidental”, mas uma agenda historiográfica: seu objetivo não é nem defender nem atacar posições “pagãs” ou “esotéricas”, mas garantir que as correntes às quais se aplicam esses termos sejam reconhecidas como fatores históricos de monta no desenvolvimento da cultura ocidental.
Em suma, como dirá noutra página, sua ambição é transformar aquilo que sempre foi o “Outro” da academia, aquilo que ao longo das eras foi rejeitado como irracional, supersticioso ou mesmo francamente demoníaco, em assunto sumamente acadêmico.
Muito bem: passo longe de negar os méritos da empreitada e não deixo de me beneficiar alegremente dos estudos de Hanegraaff ou dos pesquisadores que passam quase semanalmente pelo SHWEP. Mas há um problema, e não é um problema sutil. Recorrerei a um exemplo.
Outro professor interessado em “conhecimento rejeitado”, Justin Sledge, responsável pelo canal Esoterica (talvez o mais influente do mundo nesse nicho), definiu-se numa entrevista recente como “pós-teísta”. Houve quem estranhasse; eu não. Um acadêmico (no momento fora da academia e dedicado cem por cento à atuação on-line) que grava vídeos em série — alguns deles excelentes — sobre história do misticismo, da tradição hermética e da magia e que de repente se declara nem crente nem descrente em Deus, mas alguém que se interessa “objetivamente“ e “historicamente” por religiões, sem angustiar-se com questões de teísmo que não são mais que resquícios de uma era pretérita…
Sledge pode parecer sui generis, tanto mais por ser judeu e nesse quesito refletir alguns dos impasses de um povo de identidade supostamente religiosa, mas que em sua maior parte não só não tem religião alguma, como até promove ativamente a mais extrema visão de mundo progressista ocidental. Não é, repito, sui generis: sua postura é na verdade a mais disseminada em departamentos de história, ciência da religião e filosofia que abrem espaço para estudos de esoterismo ou, se quiserem, de assuntos menos afins à mentalidade liberal, cientificista e progressista. Mas a ironia é que justamente o espaço para o estudo desses assuntos, a delimitação de uma área de pesquisa prestigiosa dedicada ao “conhecimento rejeitado”, nasce de uma visão multicultural e revisionista que seria impossível nos meios onde de fato esse conhecimento não é rejeitado, e sim aceito com naturalidade.
Um bruxo, enquanto bruxo, só reconhecerá importância em estudos acadêmicos sobre magia se estes últimos lhe auxiliarem em sua prática da bruxaria. Um estudioso de “conhecimento rejeitado” só reconhecerá importância na bruxaria se for capaz de transformá-la em objeto de uma tese de doutorado. Ora, justamente a disciplina que se propõe a compreender o “Outro” da academia está erigida sobre a incapacidade de reconhecê-lo senão como “Outro”, como algo que não pode ser vivido, não pode ser acreditado, mas apenas analisado, estudado. Temos então pesquisadores que não acreditam em anjos, mas passam décadas escrevendo sobre angelologia; pesquisadores que não acreditam no fenômeno astrológico, mas passam décadas estudando astrologia; não acreditam em Deus, mas sequer se dão ao trabalho de nos avisar de que Ele não existe, tão ocupados estão com suas monografias de história da teologia apofática.
Uma área de estudos que poderia ter revitalizado as ciências humanas, poderia ter batido de frente com as cisões entre ciência e arte, entre sabedoria e conhecimento técnico, que poderia ter criado novos modos de vida dentro das universidades que não se reduzissem aos ritos de praxe (projeto, qualificação, defesa de tese), tornou-se uma forma extremamente delicada e erudita de despersonalização, de apagamento do indivíduo dentro de um projeto historiográfico cuja pretensa imparcialidade é cobrada ao preço da indiferença pessoal. De nada adianta ser “antieclético” se você considera ideológica e fatalmente redutora qualquer perspectiva globalizante acerca de um assunto. Excetuados os casos manifestos de fraude factual, tomar posição é um passo necessário à compreensão de qualquer assunto. Imagine então quanto o assunto em questão pode decidir o destino de almas.
Sinto saudades do ateísmo, até do ateísmo militante, quando meu interlocutor ainda se dava ao trabalho de discordar de mim. Hoje, na melhor das hipóteses, ele escreverá um artigo explicando a origem da minha crença em Deus.
b. A língua dos anjos
Onde moro, o sentimento de que a linguagem empolada, até mesmo desarticulada, possui poderes mágicos, ou pelo menos poderes extraordinariamente incomuns, ainda é bastante vivo. A inventividade de onomatopeias é prezada nas conversas mais casuais, mas uma onomatopeia especialmente estranha pode causar achaques e constrangimentos. Tenho parentes que ainda me advertem se pronuncio certas palavras, ou produzo certas fonações, em certos contextos, o que traria mau agouro. E o grito da rasga-mortalha jamais deve ser reproduzido.
Compreendo. Quando as Fúrias aparecem ao fim do Orfeo de Angelo Poliziano (libreto da primeira ópera, ou coisa similar, de que se tem notícia, na segunda metade do século XV), expressam-se a certa altura desta maneira:
Bacho Bacho eu hoe
Chi vuol bevere chi vuol bevere
Vegna a bevere vegna a bevere…
(…)
Bebi tu et tu et tu
I non posso ballar piu
Ognun gridi heu hoe
Ognun segue Baccho te
Baccho Baccho hue hoe
Se você entendeu pouco ou quase nada, não se preocupe: o poeta queria que essas palavras não tivessem perfeita significação. Ou você espera compreender inteiramente a língua falada por seres infernais prestes a atingir o estado de embriaguez extática necessário para despedaçar Orfeu festivamente e distribuir pela floresta os restos de seu corpo mutilado, assim plantando a essência do canto nas raízes da vida e na escuridão dos bichos selvagens?
Durante o Renascimento, talismãs (pedras, anéis, pingentes etc.) eram não raro adornados com palavras de significação nenhuma, ou significação perfeitamente imaginosa (o que não é sinônimo de perfeitamente inverídica), às quais se atribuía o poder de mover a vontade humana, de passar por cima da compreensão racional e acionar diretamente a ação. Giordano Bruno estudaria atentamente a “arte da memória” e as aplicações mágicas que há séculos alguns eruditos menos escrupulosos lhe davam e a tornavam a primeira tecnologia de manipulação de massas da história (fato que discuti numa das aula de “A Alegoria do Mundo”, aliás).
Seu predecessor Pico della Mirandola era mais megalomaníaco porém mais bem intencionado: queria, nada mais nada menos, descobrir qual é a linguagem própria aos anjos, qual língua eles falam, pois o ser humano que a descobrisse poderia elevar-se a realidades mais altas que, expressas ao comum dos mortais, soariam como as palavras das Fúrias (como pouco mais de um século depois acabariam soando a John Dee, durante suas sessões de invocação dos supostos anjos que lhe explicariam detalhadamente sua língua).
Muito amigo de Poliziano e alguém fascinado pelos mitos de Orfeu (ao mesmo tempo criador da filosofia e do canto), é muito provável que ele tenha assistido pelo menos a uma representação daquela ópera.
Não lhe terá soado suficientemente sugestivo que tão poderosa linguagem tenha sido posta na boca não de emissários benfazejos, mas de seres que habitam os infernos? A linguagem perfeita virá mesmo do céus?
Voltarei à questão e a Pico, cuja vida e obra são cheias de sugestões sobre o assunto.
Diga lá!
Não se acanhe: caso você tenha alguma pergunta ou sugestão a fazer (seja de artigo, seja de aula ou mesmo curso inteiro), por favor responda a este e-mail ou deixe um comentário em meu site. Sua pergunta pode, quem sabe, me motivar a escrever um texto ou a gravar um vídeo em resposta.
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