Preâmbulo
* Até 1º de novembro você pode adquirir meus livros com até 70% de desconto — veja lá.
* Aos que me perguntaram: de fato, não estou mais encarregado do Boletim Cultural que o Seminário de Filosofia disparou semanalmente, via newsletter, ao longo de quase um ano. Os textos que escrevi não estão disponíveis on-line, infelizmente, à exceção de uns poucos que tomei eu mesmo a liberdade de reproduzir em minhas páginas, como esta resenha do romance Ave Maria, de Sinan Antoon.
* Em novembro abrirei uma turma de Iniciação à Filosofia com Éric Weil. Lerei com alunos e colegas, mês a mês, a sua Lógica da Filosofia. Se você me mandou e-mail sinalizando seu interesse, saiba que seu nome já está na lista daqueles aos quais enviarei o link de inscrição. Se você apenas respondeu com um “oi” à minha última newsletter, peço desculpas: por um erro de configuração do e-mail de disparo, eu jamais conseguiria receber sua resposta. Acesse então este formulário e forneça seu contato, por favor. O formulário traz algumas informações a mais.
* Foi-se o primeiro mês de atividades do novo programa de A Fantasia Exata (tão cedo não volto a lhes lembrar deste link — prometo! — nesta seção preambular). Obrigado a todos que apoiaram a iniciativa.
O cansaço da filosofia — e o que vem depois
Dos Cadernos de Filosofia Adiada
1.
Ouço de um amigo a confissão: está cansado de filosofia. E cá penso eu: e como poderia não estar, se ele não é frívolo, e portanto não lhe escapará que a maior parte do que hoje se chama de filosofia é, afinal de contas, uma filosofia do cansaço, ou na melhor das hipóteses um pretexto filosófico para adiar o cansaço mediante pílulas de tomismo, sedativos kantianos, barbitúricos aristotélicos?
Para a pessoa educada o palavreado filosófico, já não é de hoje, começa a parecer palavrório, destino fatal de todo discurso que se arrisca a distanciar-se demais da vida. A aparência de contemporaneidade, de tratamento de temas da ordem do dia, é mesmo uma aparência, pois de nada adianta falar de estatismo versus liberalismo, de natureza humana versus transumanismo, de fronteiras nacionais versus migrações transnacionais, se a linguagem empregada representa apenas a continuação desses mesmos problemas por outros meios.
2.
Há quem tenha a certeza mais absoluta de que até a consumação dos tempos estaremos envolvidos num debate entre esquerda e direita, e para quem acredita nisso talvez não soe mais que deselegante, ligeiramente forçado, afirmar que Cristo é de direita e o Anticristo, de esquerda.
Essa falta de imaginação política, acompanhada de um abastardamento da imaginação teológica, não é mais que um sintoma de nossa imperícia linguística e de nossa incapacidade de articular filosoficamente posições as mais contrárias num mesmo arcabouço teórico, que seria dado pela vida. Temos então de nos aferrar desesperadamente a terminologias duvidosas e a escolas de pensamento pernósticas para garantir alguma vida comum, alguma articulação totalizante dos problemas que dia a dia se acumulam diante de nós. Damos então o nome de “filosofia” à atividade sumamente burocrática de catalogação de opiniões, triagem de suas razões e averiguação de seus fundamentos. Em alguns diálogos de Platão, sofistas se mostravam capazes disso. Mas isso não era suficiente para torná-los filósofos.
O exemplo permite recordar que a filosofia, por outro lado, depende de certo cansaço. Sócrates estava cansado do palavreado de retores, tribunos, bruxos. Ele buscava a palavra capaz de unir novamente a tribo, a palavra não de fácil discussão necessariamente, mas de sentido claro. Como se dissesse: chega de confusão, chega de chatice. Como, de fato, Aristóteles nos dá a entender, pois, se na Metafísica afirma que a filosofia nasce do espanto (taumazein), na Ética a Nicômaco afirma que a mais alta atividade contemplativa requer o ócio (scholè). O filósofo precisa dar um passo além do sentimento de confusão causado pelo espanto; e o que o move a tanto é o aborrecimento, o cansaço que tudo aquilo que é confuso provoca numa alma que se encontra ociosa.
3.
Mas a filosofia não existiu sempre; arrisco-me a pensar que tampouco existirá para sempre. Deus não é filósofo; a filosofia não é eterna, como o são algumas coisas que ela tomou por temas seus, a começar por Deus. Deus seguirá recebendo atenção e entendimento por parte dos seres humanos. Nada garante que a forma desse entendimento tenha de ser sempre garantida pela reflexão filosófica. A filosofia era impensável, como também são impensáveis as formas de existência que podem suceder-lhe.
Arrisco-me ainda mais: se foi certo cansaço que nos levou à filosofia, não será também esse mesmo cansaço que nos levará a abandoná-la, a ponto de no futuro ela ser vista como uma estranha relíquia do passado, com a qual se pode aprender algo mas a qual não se pode levar inteiramente a sério? Será o futuro da filosofia o que hoje, para nós, é o passado da alquimia?
Suponhamos que isso ocorra. Suponhamos e perguntemos: o que virá após a filosofia? Se não pudermos mais falar de uma consolação da filosofia, poderemos quem sabe falar de uma consolação do mito, o que não é inteiramente estranho à obra de Vicente Ferreira da Silva, esse brasileiro cronicamente cansado, já na década de 1950, de certos modos hegemônicos de fazer filosofia? Essa é uma tentação imediata, uma quase facilidade do pensamento. Resistamos à crença de que após a filosofia encontraremos o que já existia antes da filosofia: o mito. O mito é coeterno à existência e cumpre a função de redoma do ser. Com ele fizemos nascer a filosofia, com ele faremos nascer o que vier após a filosofia — se é que virá algo.
4.
Recordo algumas palavras de Vilém Flusser, na Fenomenologia do Brasileiro, as quais estão destacadas em minha homepage: talvez, quem sabe, o que nos aguarda no futuro, pelo menos em determinadas partes do globo, seja a circunstância de que “um pensamento não-histórico [mítico] conseguiu assimilar a filosofia do Ocidente e deu um salto que transforma não apenas o pensamento não-histórico, mas a própria filosofia”.
Talvez assim não nos sentiríamos mais cansados da filosofia. Ninguém, que eu saiba, está cansado da alquimia; no máximo, ignora-a.
Vicente Ferreira da Silva e a cultura brasileira
Seminário Impermanente #3
(assista também à parte 1 e à parte 2)
O tema da fantasia exata havia me conduzido à pergunta pelo quanto a adequação entre forma e sentido dependeria de certa imagem estática e hipostasiada da natureza, o que equivale a perguntar se entre o discurso (mundo humano) e a natureza (mundo não humano, segundo certo entendimento bastante comum) não haveria mais mediações do que se costuma pensar.
Vicente Ferreira da Silva nos ajuda a compreender que sim, que essas mediações são muitas e extremamente delicadas, ligadas que estão à própria matriz cristã de nossa cultura e ao movimento de oposição sujeito-objeto que ela deflagra. O filósofo brasileiro vislumbrou então a possibilidade de um novo padrão de mediações entre o Sentido (não histórico, verticalmente superior) e a Forma (as configurações mentais e culturais que damos àquele primeiro elemento). A abertura dessa possibilidade é um esforço que está no centro de sua filosofia do mito.
Estranho, contudo, é que Vicente Ferreira não se tenha apercebido dos inúmeros traços específicos, hispânicos, “não ocidentais” da cultura brasileira que se ligam intimamente a esse seu projeto, que na verdade até o viabilizam, e isso de tal forma que mal se pode conceber uma filosofia como a vicentina a nascer em outro lugar que não em terras latino-americanas.
No vídeo abaixo (36 minutos), trato da estranha relação entre a filosofia do mito de Vicente Ferreira da Silva e a cultura brasileira.
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