A liberdade não é natural

O primeiro dos textos abaixo (nota “a”) é mais uma discussão preliminar ao meu novo curso,“Iniciação à Filosofia com Éric Weil”, que se inicia na próxima quinta-feira (13). Informe-se e inscreva-se.


Notas de andar e ler (#003)

a. A liberdade não é natural

O exercício da filosofia, vimos no texto anterior, deve ser necessário, ou do contrário não será exercício filosófico, pelo menos não como o entende Éric Weil em sua Lógica da Filosofia.

Essa necessidade só se evidencia, contudo, quando o aspirante a filósofo abandona o círculo fechado das discussões filosóficas e se confronta com o não filósofo, com o indivíduo comum saudavelmente cansado de negar as requisições imediatas da vida, seus prazeres e seus deveres; o indivíduo, enfim, que abandonou a negação e alcançou uma espécie de contentamento distraído.

Todos tendemos naturalmente, enquanto animais, a imergir cada vez mais no fluxo da existência irrefletida, que se compraz no instante; e todos tendemos de forma já não tão natural, enquanto seres racionais, a nos distanciarmos daquele fluxo, a negá-lo, a fim de tomar a existência como um todo em sua unidade, íntegra em meio a dispersões e acidentes, fazendo-o desde o ponto de vista da formalidade, da unidade discursiva. A existência transcorre em meio a contradições; o homem racional não as suporta e busca, por um movimento de negação, estabelecer uma unidade que lhe permita ver alguma congruência entre seu modo de vida e o modo de existência da realidade circundante.

Por mais tedioso que isso possa parecer num primeiro momento, para Éric Weil o filósofo é nada mais que o homem que levou sua racionalidade a sério, que a levou às suas últimas consequências. E, entre essas consequências, está a de que contentar-se com a negação do simplesmente dado não é, por si só, uma decisão racional; seria apenas uma variação da satisfação do homem comum, do antifilósofo, com tudo o que a vida naturalmente lhe traz sob a forma de prazeres e dores, expectativas e frustrações. De fato, muita gente que se interessa por filosofia pára nesse ponto, contenta-se com a negação do irracional, e disso faz toda a sua atividade dialética. Weil nota que o filósofo, o legítimo filósofo, negará necessariamente essa primeira negação: a Unidade, a formalidade unitária de tudo o que existe, deve agora também ela ser negada. Pois, escreve ele, “É a negatividade, não a positividade, que mantém juntos céu e terra, é a contradição que é o sopro e o sangue do Ser” (trad. Lara Christina de Malimpensa).

Afirmar inteiramente a Unidade equivaleria a negar o que torna possível essa afirmação. E o que a torna possível, o que torna possível não contentar-se com a vida simplesmente animal e sensória, é precisamente a decisão do indivíduo de não contentar-se, decisão essa que caracteriza essencialmente a sua liberdade, com a qual tampouco pode contentar-se. O filósofo se posiciona contra o dado, o mundo tal como simplesmente nos surge, por um lado; mas também contra o construído, o mundo tal como o redimimos de sua fragmentariedade por recurso a uma Unidade potencial que percebemos nele. É assim que o filósofo, de negação em negação, abre espaço para a atividade livre de sua consciência. O homem comum tem suas tentações; mas também o filósofo tem as suas, como a de fazer da própria filosofia um novo “mundo natural” dentro do qual transcorrerá comodamente uma vida bem pouco filosófica, bem pouco conflitiva.

Se a liberdade não é natural, é porque ela nasce de um mundo interior que o filósofo confronta com o que, bem ou mal, ele chama “natureza”, “mundo objetivo”, “dado”. Nada nesse âmbito é capaz de revelar a origem ou aclarar o funcionamento da liberdade; ela é sobrenatural no sentido mais rigoroso do termo: algo que se coloca acima do natural, do fatal, do irrecorrível; algo que está diante daquilo que só pode ser o que é, ao passo que o ser humano livre pode até optar por deixar de ser o que é (conforme alguns imaginam o suicídio).

Escreve Weil:

são também os fatos que dão ao homem a possibilidade de se decidir concretamente, é também o fato de sua vontade que lhe permite falar de sua liberdade, pensar essa liberdade para sempre incognoscível: é somente opondo-se aos fatos que ele se torna não fato, liberdade, subjetividade, e ele nada seria sem os fatos. Ele é razoável, ele persegue, ele deve perseguir fins que estão de acordo com o fim único, a pura e total compreensibilidade razoável de todos os atos e de todos os acontecimentos; mas ele só pode imaginar esse estado final negando tudo que ele conhece concretamente e, mesmo nos momentos de mais profunda confiança, ele só poderia falar de abordagem assintótica, visto que mesmo sua imaginação não pode construir para ele uma imagem positiva do reino dos fins.

Na Lógica da Filosofia, essa “imagem positiva do reino dos fins” só poderá ser perfeitamente articulada, não apenas vislumbrada, ao se alcançar a categoria filosófica do Absoluto, quando então será necessário iniciar um novo movimento dialético, de inconformidade com certa apreensão perigosa dessa finalidade última e total de tudo, que facilmente constrói campos de concentração em sua vizinhança. Sem essa nova negação, jamais chegaríamos a experimentar a vida pelas lentes da categoria final (mas não absolutista, segundo a formulação que lhe dá Weil) da Sabedoria.

b. Não se preocupe com o Ocidente

Por que se ocupar da preservação de algo que deixou de existir, ainda mais que sob tantos aspectos é até o caso de comemorar sua desaparição?

Meses atrás escrevi…

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