1. Não ao não
Apesar de terem transcorrido apenas quatro aulas, foi considerável o caminho percorrido até agora na Iniciação à Filosofia com Éric Weil: de uma definição provisória de “homem” passamos a uma definição provisória de filosofia como “negatividade”, como recusa de entregar-se ao fluxo de desejos e requisições exteriores, recusa que depois é negada para justamente fazer a investigação filosófica (especificamente dialética) prosseguir. A negatividade não pode se tornar ela própria um conveniente ponto de repouso. O filósofo não pode se contentar com ser um adolescente punk trancado no seu quarto.
Compreendemos os polos em meio aos quais Weil situa suas discussões (filosofia vs. violência, absoluto vs. história, indivíduo vs. comunidade, atitude vs. categoria); compreendemos como um fenômeno especificamente humano, a liberdade, dá uma feição bastante peculiar à decisão a princípio irracional, porém depois reconhecida como razoável e mesmo moralmente obrigante, de fazer filosofia: aquele que busca tudo reunir na Unidade, aquele que reconhece na ruptura formal entre realidade e pensamento a marca da inautenticidade, terá por fim de também compreender que a formalidade, o instinto de evitar contradições, pode levar ao esvaziamento de sentido de faixas inteiras da realidade, que passam a não ser mais que reflexos de uma abstração. A obra de Franz Rosenzweig nos ajudou na segunda aula a discutir os riscos da Unidade, que muitas vezes não passa de uma sedutora barata.
Atento a essas dificuldades, o filósofo, ou aspirante a filósofo, terá de reconhecer que o fundamento de seu modo de vida, a liberdade, afinal aquilo que lhe permite optar decididamente pela racionalidade, não pode ser inteiramente submetida à unidade, ou do contrário não será liberdade alguma. Essa tensão é permanente e se tornará mais intensa quanto mais longe se levar o esforço filosófico. Na terceira aula discuti a inspiração tipicamente kantiana dessa ideia e a versão radical que ela assume na obra de Otto Weininger.
O restante de Lógica da Filosofia, que seguiremos lendo, esclarecerá como diversas posturas existenciais básicas, as “atitudes”, se traduzem formalmente, conceitualmente, em “categorias” que são legadas à posteridade e que podem ser tanto meios de fazer filosofia como de se afastar dela, ainda que pensando levá-la adiante. Nessa atividade de compreensão e desocultação das categorias que se acumulam historicamente consiste a lógica da filosofia (trad. Lara Christina de Malimpensa):
A lógica da filosofia é, assim, a sucessão dos discursos coerentes do homem, sucessão cuja orientação é dada (para nós) pela ideia do discurso coerente que compreende a si mesmo. Esses discursos serão particulares, visto que as atitudes que neles tomam consciência de si são atitudes particulares do ponto de vista do discurso coerente, atitudes que distinguem entre um essencial e um inessencial, e que, por conseguinte, não aceitam em seu caráter positivo tudo o que lhes é dado e que elas reconhecem como dado. (…)
De que modo, a partir das atitudes mais simples (e que, justamente por isso, só podem ser compreendidas ao fim da análise), o discurso se desenvolve, de que modo o que só é reconhecido implicitamente (como o que deve ser eliminado ou suprimido) é explicitado na consciência da atitude: mostrá-lo é o próprio trabalho da lógica da filosofia, e é ao longo desse trabalho que ela se constitui como filosofia primeira, fundamento de toda filosofia posterior, seja qual for o nome desta última: ontologia, moral, psicologia, política, filosofia da natureza, da existência ou da ciência: é na lógica da filosofia que todas elas se compreendem em seu sentido para o homem que as faz.
No segundo mês de Iniciação à Filosofia com Éric Weil nos dedicaremos aos capítulos I a V desse extenso livro, os quais cobrem, respectivamente, as atitudes (depois tornadas categorias) “Verdade”, “Não sentido”, “O verdadeiro e o falso”, “Certeza” e “A Discussão”. Serão mais quatro aulas, a primeira delas na próxima quinta-feira (11). Novos alunos terão acesso às quatro aulas do primeiro mês.
Informe-se e inscreva-se. (Se você foi aluno durante o primeiro mês, saiba que outro e-mail lhe foi enviado com informações sobre como renovar sua inscrição.)
2. A verdade e a Outra
Anterior a qualquer investigação ou discussão, anterior à própria possibilidade da linguagem, a verdade é aquilo que de mais indiscutível existe. Todas as discussões podem discutir tudo, menos a possibilidade de que a discussão possua algum sentido. A verdade é esse sentido, é a ideia de que é preciso que haja um alvo, ainda que o alvo em si possa variar.
Isso não é dizer muito. Tão abstrata e indefinível quanto o “ser”, a verdade, contudo, não escapa à vivência de ninguém, ao passo que discussões de ontologia só ocorrerão a um número ínfimo de indivíduos. É necessário grande esforço para reimaginar essa espécie de grau zero da experiência, quando não nos ocorria diferenciar ser, existência e verdade. Parmênides e Xenofonte, como os lê Éric Weil, apenas traduziram em linguagem razoavelmente acessível o que até então só se poderia compreender mediante a própria vida. Que disseram? Disseram da experiência de proximidade permanente que envolvia a vida de todos e cada um. “Ser”, nesse caso, é mesmo “ser verdadeiro” porque tudo simplesmente ocorre à cognição, à experiência, nela assinalando uma presença contínua do que, à falta de melhor nome, se poderia chamar de “mundo“, justamente o mundo da verdade. A consciência, enquanto capacidade de estranhar-se, ainda não emergiu.
Por isso a paisagem da vida, nesse estágio, é monótona. É similar a uma tela na qual os contornos de cada coisa particular se diluem e por isso não é fácil discernir isto e aquilo. Sim, existe diferença entre elementos do cenário, como entre uma pedra e um réptil, mas não existe nada de qualitativamente diverso de todas as demais coisas. Tudo é feito de uma única substância, a qual paradoxalmente não pode ser substantivada, isolada, definida. O mundo é a verdade e a verdade é uma monotonia. Tudo dorme um mesmo e profundo sono.
Até que algo ocorre: a falta de sentido, que rompe a monotonia da paisagem, sacode o sono da unidade, dissipa a letargia de um mundo sem movimento. A sensibilidade do ser humano é ferida pela estranheza de algo que se apresenta a ela em oposição a algum elemento da realidade mais ampla. Agora, nem todo ser é verdadeiro; e, como a expectativa usual não foi correspondida, o indivíduo que registrou em sua sensibilidade aquela discrepância terá de buscar um novo meio de tornar viável a naturalidade de experiência que foi perdida, sem contudo esquecer que justamente essa ruptura lhe surgiu como coisa valiosa. Afinal, você esqueceria com facilidade uma experiência análoga à de perceber pela primeira vez que algo não é verdade, algo está fora de lugar no mundo?
Só nesse momento a verdade assomará à sua frente como coisa valiosa, que antes se tinha por garantida, ou melhor, sequer notada, já que perdida na indiferença geral da existência. A verdade só se manifesta como verdade quando se manifesta a outra, sua outra: a não verdade, a falsidade, a ameaça do não ser, o maximamente significativo em razão de seu contraste com tudo o mais. A ausência de sentido pode inclusive fascinar, do que é amostra o sentimento muito antigo (presente, por exemplo, nas religiões clássicas da Índia) de que o ser é o não-ser, o sentido é o não-sentido, a Verdade é a Outra.
Essa estranha convivência de sentido e ausência de sentido, enquanto um dos elementos deflagradores da filosofia, é um dos temas a serem discutidos no segundo mês de Iniciação à Filosofia com Éric Weil.
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